Parte da quarta geração de brasileiros descendentes de alemães no Brasil, a infância de Carlos é passada na cidade gaúcha de Esteio. A partir de sua juventude, Carlos passa a morar em diversas cidades ao redor do mundo, sempre exercendo o cargo de pastor na Igreja Luterana. É casado com a também pastora Ruth Winckler Musskopf e pai de Nícolas e Tamara. |
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Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS)
Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC e Laboratório Hipermídias
Depoimento de Carlos Musskopf, 60 anos
São Caetano do Sul, 29 de abril de 2014
Pesquisadoras: Mariana Lins Prado e Priscila Perazzo
Equipe técnica: Felipe Misquini
Transcritora: Marialda de Jesus Almeida
Pergunta: Então, pastor Carlos, eu gostaria que você começasse contando um pouquinho a história dos seus pais, onde eles nasceram, como era a vida deles antigamente.
Resposta: Tudo bem. É uma alegria poder compartilhar essa parte da minha vida com as pessoas que vão assistir a esse vídeo. Embora eu seja de origem alemã, eu me sinto completamente brasileiro, até eu começar um pouco antes, talvez, porque eu pesquisei a árvore genealógica da família até mil seiscentos e pouco, mas, assim, no Brasil os meus antecedentes vieram em 1828, quer dizer, três anos depois de ter iniciado a colonização alemã no Brasil, que começou em 1825, e, em 1828, então, o meu antecedente veio com dois filhos e uma filha e de um desses filhos, então, eu descendo. Ele tinha três anos, ele nasceu 1825, inclusive vi a certidão de nascimento dele na Alemanha, microfilmada, mas, existe tudo lá guardado, e, então, eu sou agora a quinta geração crescida no Brasil, contando com ele, sendo que ele tinha três anos, então ele cresceu no Brasil, e eu sou a quinta geração dessa família crescida no Brasil, portanto, eu sou um típico e perfeito brasileiro, mas tenho origem alemã, isso sim, os alemães no Brasil, de uma forma geral, foram hostilizados, foram trazidos para o Brasil pelo imperador D. Pedro I porque ele queria, por um lado ele queria povoar o sul do Brasil, e povoar com pessoas brancas, ele era bastante racista, então ele queria que uma parte do Brasil permanecesse mais branca, então ele chamou primeiro os alemães, depois chamou os italianos, 50 anos depois dos alemães veio a imigração italiana, isso por um lado, e por outro lado que eles também defendessem a fronteira para o Brasil, assim, então, os alemães foram chamados para lá, mas entraram em um contexto bastante hostil, a Alemanha dizia que as cidades estavam prontas, as ruas das casas, que era só chegar e morar e começar a trabalhar, e quando eles chegaram não tinha nada, nada, não tinha rua, não tinha nada, tinham só os rios, através dos quais eles iam com barcaças, eles iam para lá, para algum lugar, e lá, de repente, eles iam, ah, aqui é que nós vamos ficar e constituíam, então, as cidades. E umas cidades, assim, e a minha família procede que a cidade chama Estrela, no Rio Grande do Sul. Nas primeiras noites, vocês imaginam, eles tinham que dormir nas árvores, trepar nas árvores e dormir, porque não tinha casa, não tinha nada, e por causa dos bichos e tal eles tinham que, até que, depois de um ou dois dias eles conseguiram construir umas choupanas e aí eles foram... Então, o alemão foi muito hostilizado, enganado, quando houve a guerra então, principalmente a segunda guerra, então o Brasil em um primeiro momento era até simpático ao Hitler e ao eixo, mas depois, então, o Getúlio Vargas se aliou aos Estados Unidos e os alemães, então, de novo, foram bastante hostilizados. O resultado disso é que, quando a gente é hostilizado a gente se fecha, e, muito lentamente, os de origem alemã se casaram, se misturaram, vamos dizer assim, com pessoas de outras etnias, assim que toda a minha família, é toda ela, no Brasil, todas essas gerações, se casaram sempre entre pessoas de origem alemã, então a razão é essa que eu expliquei. Então meus pais também nasceram em Estrela, também o meu avô era dentista e fez questão que meu pai também estudasse, e meu pai estudou mesmo em Porto Alegre, fez Odonto e se tornou dentista, e, assim, eles constituíram uma família em Estrela, sempre ficaram em Estrela, nessa cidade, e a minha mãe, como é de tradição, [risos], ela, então, ficou em casa, era do lar, cuidando do lar e dos três filhos, eu sou o filho do meio. [5’] E, assim, um dos meus irmãos ainda mora em Estrela, ele é médico, o outro mora em Porto Alegre, ____________, e eu sou um cidadão do mundo, já morei em muitos lugares, três vezes no exterior já, talvez seja uma pergunta para mais tarde.
Pergunta: Ah, a gente tem tempo aqui. Eu queria perguntar, especificamente, sobre aquela primeira geração que veio para cá...
Resposta: Em 1825...
Pergunta: Que nasce em 1825, como ele se chamava, seu antepassado?
Resposta: Johannes, Johannes Musskopf. O pai dele, que veio mesmo, né, chamava Philip Musskopf, ele veio de uma vila pequena no Palatinado, Pfalz, em alemão, chamada ____________________. Eu já fui lá visitar, inclusive quando aquela, é uma vila, uma cidade bem pequena, quando eles festejaram 650 anos de fundação da cidade, eu estive mesmo na Alemanha, na época, então eu tive a oportunidade de ir lá, na festa de 650 anos da cidade de onde meus antepassados, então. É interessante essa pergunta porque eu descendo de sem-terra, ele era um sem-terra e ele tinha apenas os instrumentos de trabalho na terra, ele trabalhava a meia, né, para outras pessoas que tinham um pouco mais de terra, e aí ele vendeu os instrumentos que ele tinha para comprar a passagem para o Brasil. Então, o que se sabe é que ele comprou a passagem para a América, pensando, provavelmente, que ele estava indo para a América do Norte, mas ele foi enganado, e quando ele viu, estava no Rio de Janeiro, e aí não tinha mais como voltar, não tinha mais dinheiro, não tinha mais nada, tinha que ficar no Brasil, daí foi para o Sul, e, então, eles acharam um espaço no Sul para morar, mas eram muito pobres, muito pobres, trouxeram quase nada, assim, a Bíblia, o livro de canto, porque eles eram já de tradição luterana também, e o Hinário, então, e a Bíblia, e não sei o que mais, não ficou mais nada, assim, como faz tanto tempo, e nunca foi feita, dessa família, uma avaliação, onde estão todos, mas são muitos, porque eles tinham bastante filhos, porque precisava de mão de obra para trabalhar na roça, então eles sempre tinham muitos filhos, e muitos filhos homens, então, tem muitos, com o meu sobrenome, assim, lá no Rio Grande do Sul e espalhados pelo Brasil, principalmente no Rio Grande do Sul.
Pergunta: Quero saber um pouquinho somo foi a sua infância, que brincadeiras você fazia, como foi a sua criação, a disciplina dos pais.
Resposta: Foi uma infância muito tranquila. Estrela é uma cidade, era, na época, uma cidade muito tranquila, tinha pouquíssimos carros, todas as ruas eram com pedras, assim, relativamente lisas, não aquelas pedras pontudas, assim, que nós chamamos de paralelepípedo, todas as ruas calçadas, as calçadas todas muito bonitas, então, uma cidadezinha muito tranquila, muito bem organizada, muito arborizada, a gente morava bem pertinho da igreja, na igreja tinha um jardim de infância, então a gente ia no jardim, depois para o colégio, que era um pouco mais longe, mas tranquilo, a gente sempre ia e voltava a pé, levava aí uma meia hora, 35 minutos, mas nunca a gente tinha medo de ser assaltado, qualquer coisa assim. Então, a gente inventava muito, não tinha muito brinquedo, né, eu tenho 50 anos, nasci em 1964, então lá no início da década de 1960 não tinha muitos brinquedos como tem hoje, que tinha vantagem que a gente fazia os nossos próprios brinquedos, a gente construía os próprios carros, os carrinhos, com serrinha, com madeira, eu tinha um amigo, tenho ainda, que o pai dele tinha uma loja de móveis, e os móveis vinham embalados em madeira, em compensado, né, então tinha muita madeira à disposição, e a gente pegava aquelas madeiras, desenhava os carros, e fazia, então cortava com serrinha e fazia as rodinhas e tudo, né, a suspensão [10’], fazia carros maiores, menores, fazia corrida de carros, então era muito tranquilo, assim. Jogava bolita na rua, bolinha de gude, né, aquelas bolinhas de vidro, assim, é bolita, bolinha de gude, era muito, muito tranquilo. Andar, por exemplo, que nós chamamos de carrinho de lomba, lomba é morro, aqueles carrinhos de rolimã, então a gente andava na frente de casa, porque dificilmente a gente ia atropelar alguém [risos], porque dificilmente ia passar alguém. Eu me lembro de uma vez, em um domingo de manhã, um acidente na esquina lá perto da minha casa, mas foi um acontecimento na cidade, um acidente, dois carros bateram, um não era de Estrela, por isso que deu a batida [risos], porque era tudo muito, muito tranquilo, muito seguro, a gente, por exemplo, no verão, passa um rio chamado Taquari, então e a gente ia tomar banho no rio, e, a mãe colocava, assim, horário, então ia às nove horas da manhã mas às onze já tinha que estar em casa, então, às onze, pontualmente, a gente estava em casa, daí na próxima semana ela deixava voltar às onze e quinze, e a gente ia conquistando especo assim, mas era o jeito da gente viver, muito simples e com muita segurança, muita tranquilidade.
Pergunta: Seus irmãos têm idades próximas da sua?
Resposta: Tem. Meu irmão mais velho tem um ano e meio mais que eu e o mais novo tem um pouco mais, tem quatro anos menos, claro que daí quando chegamos aos 14/15 anos a gente queria dirigir e não podia, também a polícia fechava o olho se a gente desse uma andadinha por lá, é, como se dizia na época, paquerar as gurias [risos], então, era tudo muito ingênuo, também, com muita pureza e com muita simplicidade.
Pergunta: As escolas que você frequentava eram públicas?
Resposta: Não. Ah, isso é um aspecto interessante. Estrela, como foi fundada por alemães, tinha, praticamente, pessoas de duas religiões, os católicos e os luteranos. Os católicos tinham uma escola para as meninas, que era o Santo Antonio, e uma escola para os meninos, que era o Cristo Rei, e, os luteranos, como sempre foram mais flexíveis nessas coisas, tinha uma escola chamada Martin Luther, que era para meninos e meninas. O luterano sempre lidou melhor com isso, né, com essa, botar meninos e meninas juntos, não tinha maiores problemas, então, eu estudei primeiro no jardim de infância, na igreja, que era perto de casa, e depois no colégio Martin Luther, que é uma escola particular, fundada pela comunidade, pelo pessoal da igreja, mas frequentado por pessoas, por católicos também, mas toda vida eu estudei nesse colégio Martin Luther, até eu me formar no segundo grau e ir para São Leopoldo para estudar Teologia, na faculdade que é da igreja também, em São Leopoldo.
Pergunta: Religião era uma matéria típica da escola.
Resposta: Era uma matéria da escola sim. E, basicamente, as aulas eram dadas pelo pastor do lugar, e se ele não podia, então tinha alguma professora que tinha maiores conhecimentos, mas sim, era dada religião e era dado mais confessional, assim, não é como hoje que o ensino religioso ele é aconfessional, ele é inter-religioso, não só contempla as religiões cristãs, mas o fenômeno religioso enquanto fenômeno humano, esse é o ideal do ensino religioso hoje, que eu acho muito bom. Que as pessoas, porque o fenômeno religioso ele faz parte da cultura humana e aprender sobre isso eu acho uma coisa muito boa, é claro que sempre tem o risco de alguém, na aula, querer puxar para uma religião ou outra, então, esse modelo que é adotado no Brasil, desde 1998, se eu não me engano, eu acho um modelo muito bom, embora tenha esse risco que eu falei, que é de alguém aproveitar de forma errada.
Pergunta: E ainda falando um pouquinho sobre ensino, era bilíngue, vocês aprendiam o alemão também ou era só português?
Resposta: Não era bilíngue não, era, as aulas eram em português [15’], mas tinha aula de alemão também. Agora, já que tu pergunta, a primeira língua que eu aprendi foi o alemão, porque lá todo mundo falava alemão. Inclusive as pessoas de outras etnias, inclusive os negros que iam morar lá tinham que falar alemão, porque como é que iam se comunicar com as pessoas, não é [risos]? Claro que o pessoal todo, o meu avô falava português, meu pai falava tão bem português quanto alemão, mas a minha avó, mãe do meu pai, ela não falava, não aprendeu, ela morreu em 1966 e nunca precisou falar português, porque todas as amigas dela falavam alemão, então não foi necessário, ela também sempre estava em casa, mas já tinha integrado alguns costumes, alguns elementos da cultura gauchesca, por exemplo, o chimarrão, a minha avó não vivia sem tomar um chimarrão, então se reuniam na cozinha da casa dela ou na casa das amigas etc., mas o que rolava era o chimarrão, né, ou a rapadura.
Pergunta: E quais costumes assim, como tipicamente alemães, você tinha na sua casa? Alguma festa de Natal, de São Nicolau?
Resposta: A festa sim. O Natal bem como na Alemanha, com a coroa de advento, com as quatro velas, o Natal também, se ia no culto, 24, meia-noite, ia no culto, depois ia para casa, e aí já tinha vindo o Papai Noel, isso é uma adaptação, porque na Alemanha, o Papai Noel vem, mais de tradição, de vir no dia dez de dezembro, eu acho que é, não lembro agora ao certo, acho que é dez de dezembro, mas lá ele vinha, e sempre já tinha passado quando nós voltávamos do culto, então os presentes já estavam ali debaixo do pinheiro [risos], o pinheiro era uma tradição muito forte fazer o pinheiro, enfeitar, isso a gente ajudava, e no dia seis de janeiro era o dia de desarrumar o pinheiro, guardar as coisas e botar o pinheiro para fora. Então eu me lembro que era uma coisa muito bonita, então, no dia 25 todas as crianças iam para a rua mostrar os seus brinquedos, ah, então, ganhou uma bicicleta, ganhou uma bola, sei lá, ganhou um carrinho, oh, um carrinho japonês ou americano [risos], importado, assim, de vez em quando a gente ganhava um presente assim, mas só no Natal mesmo. E outra coisa, não tem a ver com religião, mas, assim, daí se tomava refrigerante, no Natal, na Páscoa e no aniversário, em outras épocas não tinha isso de estar aí tomando refrigerante, que nem agora se toma assim [risos], não, e lá em Estrela mesmo tinha uma fábrica de refrigerantes e cervejas, Polar, depois foi comprada pela Antarctica e a Antarctica fechou, mas era uma.., então tinha o refrigerante, tinha guaraná, tinha a tônica, tinha limão, mas isso só no Natal mesmo, então o Natal ele tinha um significado muito forte, né, e o meu tio, irmão do meu pai, que morava em Porto Alegre, ele vinha com a família, ficava na casa do meu avô, que era um bruto de um casarão, né, então eles ocupavam os quartos no andar de cima, que eram quartos para eles, para quando eles vinham de Porto Alegre para lá, e no Natal isso era tradição, então, o encontro da família. E os hinos também, além de cantar na igreja a gente cantava os hinos tradicionais: “Noite Feliz”, e tal, cantava em casa também.
Pergunta: Em alemão?
Resposta: Não, aí, já em português.
Pergunta: E as comidas, vocês tinham pratos típicos também, como é que era?
Resposta: No Natal eu acho que não tinha nada típico assim, tinha no Ano Novo, que sempre se fazia o peru, aí sim, agora no Natal não tinha uma comida típica, agora, era típico assim, para nós, de origem alemã, que não se janta à noite, de noite se come pão, pão com geleia ou pão com presunto, presunto, na época, era uma coisa assim de luxo, né, era mortadela mesmo, né, mortadela, queijo ou então as geleias, que no Rio Grande nós chamamos de chimia, porque [20’] vem do alemão, mas, inclusive, no Rio Grande, se você vai comprar uma geleia você pede, “me dá uma chimia”, então é uma palavra do alemão que se entregou no vocabulário gauchesco, e nata, porque eu não sei como em São Paulo se sobrevive sem nata, nata é um, nata do leite, batida com açúcar, e aí ela é um pouco doce, e põe a geleia, põe a Nata em cima, e é uma maravilha. E muita gente, claro, ainda fazia pão em casa, né, tinha padarias, o pão branco, nós chamávamos lá o pão d´água, que aqui é o francês, o francês é o pequenino, é um pão francês grande, que nós chamávamos pão d´água. Então, assim, mas, nós não mantivemos as tradições culinárias da Alemanha em casa, mas já em 1964 começou, a sociedade luterana de lá começou a fazer um baile, típico alemão, chamado Baile do Chucrute, chucrute é o repolho, azedo, e aí sim, com a salsicha bock, com a carne de porco e muito chopp [risos], então existe até hoje, ainda, desde 1964 até agora, bom 2014, isso dá 50 anos, 50 anos que existe essa festa lá, que então a festa típica alemã, todo o salão onde eles fazem ele é enfeitado, né, com guirlandas, com flores e tal, com muitos enfeites típicos alemães, mas em casa nós não tínhamos o costume de comer comida típica alemã, aí houve uma integração à cultura brasileira comendo arroz e feijão, massa, e coisa assim, né, massa se come muito na Alemanha, muita massa, muita batata, se comia em casa também, mas não como comida alemã, acho que já houve aí uma aculturação, coisa boa, né [risos], é que nós não somos alemães, nós somos brasileiros, com origem alemã, com tradição alemã, mas nós nos identificamos como brasileiros.
Pergunta: E como que era o lazer na sua cidade, você comentou agora sobre a Festa do Chucrute, mas o que mais tinha na sua adolescência para fazer?
Resposta: Não tinha muito não! Não tinha muito não, quando a gente se tornou maior um pouco aí tinha uma discoteca de noite, que nós chamávamos de boate, [risos] boate tem uma outra conotação, mas para nós não tinha uma conotação negativa, era ir no clube, que tinha a Sociedade de Ginástica, que os alemães prezam muito pela ginástica, então criaram lá um clube, a Sociedade de Ginástica de Estrela, que existe até hoje, e eles tinham um espaço lá em que a gente, então, fazia música, claro, música moderna, a gente dançava, e isso era no sábado à noite e domingo, além de ir no culto, todo mundo ou ia na missa ou no culto, isso era tradição também, de manhã, e aí não tinha mais muita coisa não, e a gente ficava assim, ou no clube ou em outro lugar, encontrava os amigos, às vezes tinha jogo de futebol, quando o time de Estrela ainda tinha uma certa representatividade, mas não tinha muito lazer não, era uma coisa que a gente sempre se queixava, que não tinham muitas opções de lazer. Isso nós perdemos da tradição alemã, isso que eu vou dizer, de fazer caminhadas, os alemães, na Alemanha, gostam muito de fazer caminhadas, de fazer piqueniques, sair, ir para algum lugar, passar o dia, ir caminhando e voltar caminhando, nós perdemos isso lá, nós não tínhamos essa tradição, de fazer piquenique, de fazer muitas caminhadas, conhecer lugares novos, caminhando e tal, isso a gente não tinha, então ficava se queixando que não tinha nada para fazer e também não inventava nada para fazer [risos].
Pergunta: Vocês também não tinham o hábito de ir para viagens vizinhas, para alguma festa? Cidades maiores, talvez.
Resposta: Não. Tem uma cidade vizinha a Estrela, que é Lajado que é do outro lado do rio, a gente quando então já tinha carteira de motorista, ou quando se arriscava um pouco, assim, de pegar o carro do pai, mas também, não tinha nada, alguma coisa para fazer, [25’] uma festa ou alguma coisa concreta, né, Lajado tem uma característica, tem uma rua central, então a gente desfilava de carro lá e as meninas ficavam nas janelas olhando [risos] a gente passar, ou esperando que alguém parasse para conversar, mas a gente tinha muita coragem dentro do carro, mas para sair não era tanta coragem assim. Então, mas, só até Lajado, Porto Alegre, por exemplo, fica a 120 km, né, mas a gente tinha muito, muito, Porto Alegre era muito longe para nós, ir para Porto Alegre era uma aventura, não tinha nem asfalto para lá, de 120 km, mais ou menos 100 km/ 90 km era de chão batido, depois só mais perto de Porto Alegre que a gente entrava no chão com asfalto, depois mudou tudo isso, isso era na minha época de infância e a adolescência era assim, então Porto Alegre era muito longe, a gente raramente ia a Porto Alegre, para olhar um jogo que fosse ou mesmo visitar o tio que morava lá, para nós era uma coisa muito distante, então a gente ficava ali mesmo, entre os amigos, aquela turma de meninos e meninas que a gente se dava, o que a gente fazia às vezes, agora eu estou lembrando, é reunião dançante em casa ou na garagem de casa, ou assim, nos tínhamos um ______________ nos fundos da nossa casa, era um terreno muito grande, então, era um piso bem liso de cimento, mas cimento alisado, assim, então era muito bom de dançar, isso a gente fazia, reunião dançante. Teve uma época em que a gente fazia bastante isso, bem verdade.
Pergunta: E vocês ouviam que músicas nessas reuniões?
Resposta: Ah, música brasileira, né, era Roberto Carlos, Erasmo Carlos, a Martinha, a Martinha era a paixão da minha vida, eu era apaixonado e tinha do lado da minha cama, assim, um painel na parede, toda parece assim, com fotos, e principalmente da Martinha, eu era apaixonado pela Martinha, a Maria Bethânia, Os Fevers, né, que eram um conjunto brasileiro, todos esses, Renato e seus Blue Cats, já ouviu falar? Não? [risos]. Então eram esses conjuntos brasileiros, que às vezes tinham até nome em inglês, mas eram conjuntos brasileiros que tocavam música brasileira, e a gente dançava mesmo, né. Beatles sim, Beatles a gente ouvia e gostava de dançar também. ________________, ________________ e Revive, também a gente ouvia. Mas basicamente era música brasileira, e quando era num, eu lembro disso, tinha uma outra, uma amiga, e o pai dela era gerente de banco e quando a gente fazia reunião dançante na casa dela era na garagem, e era laje, então no outro dia estava todo mundo indo no sapateiro para mandar fazer a sola do sapato, que gastava a sola do sapado dançando ali [risos]. Mas essa é uma outra característica, tinha sapateiro, usava o sapateiro, não se comprava sapato que nem agora, gastou, estragou, joga fora, compra outro, então a gente ganhava um sapato no Natal era o sapato que ia ter o ano todo, e quando lá em julho ele gastava a sola, fazia um furo aqui embaixo assim, a gente levava no sapateiro, ele colocava a meia sola e a gente usava até o fim do ano, chuva ou sol era aquilo que tinha, e, assim, não fazia falta, e não faz falta outra coisa, toda essa abundância do mundo de hoje, eu acho bom ter, mas, assim, não é uma coisa essencial para a gente ter uma vida digna, para a gente ter uma vida bacana.
Pergunta: E você foi jovem durante o período militar aqui no Brasil. Houve alguma influência lá? Como é que vocês percebiam o Regime lá na cidade Estrela?
Resposta: Bom, Estrela era uma cidade bastante conservadora, né, e, no início a gente achava isso ótimo, que os militares tinham nos livrado do perigo comunista. A gente tinha um medo terrível dos comunistas, não tinha a menor ideia do que fosse isso, e não tinha ideia também de que nem era isso, né, não havia os comunistas querendo tomar conta do Brasil [30’]. Mas, então, a gente acreditava nos meios de comunicação, no que os pais falavam, na escola se falava e achava que era isso mesmo, que era bom que tinha acontecido o golpe militar. A gente não tinha noção do que estava acontecendo nos bastidores, nas prisões, nas torturas, nos desaparecimento de pessoas, disso informações a gente não tinha. Quando, mais tarde, então a gente começou a ver outro, principalmente depois de começar a estudar, depois de sair de Estrela, aí começamos a enxergar um outro mundo e ter uma visão, uma postura mais crítica do que aconteceu, mas na época era isso, eu lembro que a minha avó era costureira e tinha o ateliê de costura, e na frente tinha um senhor que tinha um escritório de contabilidade, e tal, e ele fazia parte do Grupo dos Onze, que o Brizolla tinha criado esses grupos, assim, de onze pessoas que se reuniam para conversar, para discutir sobre política, e esse Grupo dos Onze tinham se espalhado por todo Rio Grande do Sul, e ele foi preso, e eu estava justamente ali na frente quando vieram buscar o cara. Ele não foi torturado, nem nada, logo ele voltou, mas a gente achava isso normal, achava isso até bom, que esses caras que queriam revolução, que queriam a bagunça, a baderna, né, que esses fossem, então, reprimidos A gente tinha essa postura de apoio à ditadura e ao militar.
Pergunta: Na cidade tem muitos imigrantes que vieram pós-Segunda Guerra da Alemanha ou é uma imigração mais antiga?
Resposta: É uma imigração mais antiga. Poucos que vieram da Alemanha pós-Segunda Guerra, a maioria veio antes.
Pergunta: É, porque essa postura é bastante comum aos imigrantes que sofreram com o comunismo, né, eu já ouvi umas histórias assim, pessoas que tiveram a família atacada...
Resposta: É que tiveram seus bens, é, ali não contou, assim, experiências, né, mas o fato do alemão ser pela ordem, pela disciplina, e essa coisa toda, e se imaginava que havia o perigo comunista e que eles iriam trazer a indisciplina, trazer toda bagunça etc., então as pessoas eram simpáticas à ditadura militar, e a gente, ingenuamente, também, eu sempre fiz parte do movimento estudantil, por exemplo, né, eu, tanto na escola quanto na união municipal de estudantes, eu fui até presidente dessa união municipal, mas bem ingênua, assim, de movimento estudantil para fazer festa, para fazer olimpíada, né, de fazer coisa assim, mas não de uma representação dos interesses dos estudantes para uma melhoria de ensino, todas essas bandeiras que os estudantes devem ter, né, então isso a gente não tinha.
Pergunta: Quais os sistemas de comunicação que o senhor lembra-se de ter lá em Estrela?
Resposta: Televisão e rádio. Televisão, rádio e jornal, né. Jornal tinha no Rio Grande do Sul dois, o Diário de Notícias e o Correio do Povo, tinham dois veículos bem grandes, meu pai assinava o Correio do Povo, era um jornalão, tipo Folha aqui, a edição de domingo era um livro.
Pergunta: Ele era diário?
Resposta: Era diário sim. Acho que segunda-feira ele não vinha, era de terça a domingo. É segunda não tinha, mas domingo tinha, por exemplo, um caderno cultural muito bom, muito bom, bem feito, né, tanto que o Erico Veríssimo escrevia, o grande poeta gaúcho, agora me deu um branco no nome, ele era de Cruz Alta, não, de Cruz Alta era o Erico Veríssimo, [35’] me deu um branco no nome, mas em todos casos, ele era um dos grandes poetas gaúchos, e tinham muitos intelectuais, professores e tal que escreviam nesse caderno de cultura do Correio do Povo. Então, e a televisão, o meu avô sempre foi uma pessoa ousada e ele foi um dos primeiros a ter televisão, em Estrela, foi o meu avô, e a gente não tinha televisão em casa, para olhar a televisão a gente tinha que ir até a casa do vô para assistir televisão de noite, né. Mas o que é que a gente olhava, né, a gente olhava novela, olhava filmes que vinham dos Estados Unidos, “Jeannie é um Gênio”, “______________”, [risos] essas coisas assim, então a gente tinha todo, o modelo que a gente tinha na cabeça era o modelo americano. A gente lia “Tio Patinhas”, por exemplo, também, as revistas do Mickey e do Donald também e nem se dava conta do que estava por trás disso, que o Mickey sempre vai para um país em que os nativos têm algum problema e ele vai e resolve os problemas para os nativos, essa é sempre a história do Donald, ele é inteligente, ele é capaz, e ele sozinho consegue resolver o problema dos outros, né, que é uma ponta de lancha ideológica dos Estados Unidos, né, eles vêm e resolvem os problemas do Brasil, né, então a gente não tinha percepção disso, a gente achava que, ou o Zé Carioca, por exemplo, o Zé Carioca é um deboche a nós como brasileiros, como se todo brasileiro fosse o Zé Carioca, então, mas a gente achava aquilo normal, achava que era assim mesmo, nós fomos educados de uma forma muito acrítica, essa é uma característica, assim, e ainda tem muitas pessoas que moram em Estrela e ainda acreditam que o governo federal aqui do Brasil é comunista, e que não sei que, e todas aquelas histórias, lorotas, assim, que tem pessoas que acreditam que não desenvolveram o raciocínio crítico, preferem assim, fazer o que.
Pergunta: E com quantos anos, então, você foi para a faculdade?
Resposta: 19 anos, em 1973, eu tinha feito 19 em fevereiro e em março começaram as aulas. Eu sempre fui um cara rebelde, eu tinha o cabelo comprido, assim, quando ainda não era moda ter tão comprido, eu sempre tinha, quando era boca de sino, sabe o que é boca de sino? Né, tinha época que era moda, então a maior boca de sino que tinha em Estrela era a minha. No culto, isso eu até esqueci de mencionar antes, no culto os homens sentavam de um lado as mulheres do outro, e eu sentava do outro lado, eu ia todos os domingos no culto, mesmo que eu fosse na discoteca, na boate, né, eu voltava para casa, tomava banho, tomava café e ia no culto. O culto era oito e meia da manhã, era bem cedinho, e depois que eu ia dormir, mas eu ia ao culto todos os domingos, é que eu já queria ser pastor, sempre, desde que eu me lembro por gente eu sempre quis ser pastor. Então, eu sempre tive uma tendência a ser mais rebelde, mas eu nunca organizei essa rebeldia politicamente, antes de sair de Estrela, então como eu disse, eu até era do MDB Jovem de Estrela, fui também presidente do MDB Jovem de Estrela, ia aos comícios, fiz propaganda política para um candidato a prefeito lá, na época, em 1972.
Pergunta: E MDB é sigla do que?
Resposta: Na época só existia Arena e MDB.
Pergunta: Ah, sim, o partido.
Resposta: Tinha o bipartidarismo, e eu, evidentemente, não era Arena, eu era MDB, era da oposição, mas não tinha muita noção, assim, do que significa ser oposição, era até um certo ponto, assim, mas era mais uma rebeldia. Então tinha um núcleo jovem do MDB de Estrela e eu era o presidente desse núcleo jovem, então sempre tive assim a disposição de conhecer, de criticar, mas isso muito teoricamente organizado na minha cabeça, porque não tinha em Estrela onde fazia isso, escola não proporcionava, a política e a religião também não, então a gente ficava bastante limitado. E aí sim, [40’] quando eu entrei, com 19 anos, quando eu entrei na faculdade de teologia, aí sim, comecei a ler alguns clássicos, né, e então começar a entender o que realmente estava acontecendo no Brasil.
Pergunta: E você foi morar sozinho?
Resposta: Num primeiro momento eu morei no prédio da faculdade, um ano e meio, e depois eu fui morar em uma república, também, eu poderia ter morado lá o tempo todo, mas isso não me servia, eu queria ter mais contato com outras pessoas, daí eu não morava mais lá, porque em São Leopoldo tem um morro, onde é chamado Morro do Espelho, onde tem a faculdade de teologia, tem uma escola, tem a editora da igreja, muitas coisas da igreja lá, então eu fui morar na cidade, com outros estudantes e a gente fez uma república e aí a gente tinha contato com outras pessoas, com outras mentalidades, e isso foi muito bom para abrir os horizontes da gente. Sozinho mesmo eu só morei no fim, na época que a gente chama hoje de TCC, do trabalho de conclusão.
Pergunta: Para você, então, não existia nenhum conflito que de repente gostar muito de religião, você comentou que sempre quis ser pastor, e a ideia que a gente tem é que é um pouco mais conservador, e ao mesmo tempo você se considera um rebelde.
Resposta: Nunca houve conflito, não, não. Inclusive um tempo eu fui DJ, desse espaço lá na Sociedade de Ginástica, e sempre tive uma vida bem normal, como todos jovens, de ter cabelo comprido, de ter tomado também uma vez um pouco de whisky demais, ter me embebedado, então, todas as coisas que os jovens normais faziam na época eu também fiz, e eu acho que foi muito bom, assim, né, não tive uma vida acética ou nada disso assim. E depois o estudo da teologia me fez muito bem, porque ele organizou a rebeldia, botou um estatuto, uma teoria, nessa rebeldia, e então eu consegui passar da rebeldia para a visão crítica, hoje eu me considero uma pessoa que tem uma visão crítica, acho importante a gente ter essa visão crítica, procurar ver o outro lado, procurar ver como as coisas se organizam, né, o que é que tem por trás, o que a mídia diz, eu sou um crítico muito feroz à nossa mídia [risos] acho que nós temos uma das piores mídias do mundo, eu já morei na Argentina, morei nos Estados Unidos, morei na Alemanha, então eu tenho um pouco de noção do que a mídia pode ser e pode fazer, e eu acho que no Brasil é a pior de todas, a manipulação que a mídia faz no Brasil é uma coisa vergonhosa mesmo. E também na religião, e também na teologia, eu transferi essa rebeldia para a crítica e me liguei a um movimento teológico chamado Teologia da Liberação, um dos grandes expoentes no Brasil é o Leonardo Boff, mas tem outros expoentes que não são tão famosos, mas que são pessoas que também, inclusive não do meio católico, que também atuaram como pastores, mas dentro de uma visão de entender que o pecado não é só uma coisa pessoal, o pecado ele também é estrutural, e não adianta só transformar as pessoas se a gente também não visa também uma transformação da sociedade, das estruturas, das leis que regem, leis escritas, mas principalmente, as não escritas da sociedade, então se a religião, se a fé, me leva só para o pessoal, para o individual, então eu acho que ela está sendo manca, ela está sendo capenga, ela tem que dar esse outro passo [45’] também de entender a relação que existe entre as pessoas, entre os indivíduos, e a situação social, econômica, ideológica, na qual ela vive, e quando a gente faz essa relação, então sim, eu tenho que mudar, para mudar a sociedade, para que eu possa mudar, para que a sociedade mude, para que haja esse jogo dialético de mudança e de evolução mesmo das condições das pessoas, e não só “Ah, agora eu já tenho Jesus no coração, eu estou bem, os outros que se danem”. Então, logo eu me aliei a esse grupo que tem essa visão mais dialética da pessoa e da sociedade.
Pergunta: Isso foi uma visão que você foi construído a partir de leituras ou de repente e chegou em uma experiência prática de algum evento que aconteceu?
Resposta: Basicamente de leituras. Leituras e das aulas também, né. Nós tínhamos alguns professores que tem essa visão, que tinham, né, eu acho que não tem mais nenhum deles lá, na faculdade de Teologia, e tanto que depois eu fui estudar Sociologia também, em 1978, comecei em 1973 na Teologia, em 1978 eu fui estudar Sociologia na Unisinos, que é em São Leopoldo também, eu já não morava no morro, eu morava na cidade, então eu ia assistir as aulas de Teologia durante o dia e à noite eu fazia Sociologia na Unisinos. E lá também me envolvi no movimento estudantil, no diretório acadêmico, no diretório central, eu fui um dos fundadores do diretório central livre da Unisinos, e tinha um diretório central coordenado pela direção da universidade, né, e nós criamos então, e era ligado ao DEE (Diretório Estadual dos Estudantes), que era uma estrutura da ditadura militar, e então nós criamos o DCE livre, ligado à UNE.
Pergunta: E aí você não sentiu nenhuma espécie de repressão, _______________ político diferente?
Resposta: A gente sempre tinha muito medo sim, sempre tinha muito medo, porque a gente tinha que cuidar, realmente, com quem falava, o que falava, porque em todos os lugares tinham espiões, espiões não, mas eram pessoas inocentes úteis, que deduravam a gente. Tanto na Unisinos, por exemplo, na faculdade de Teologia não, mas na Unisinos a gente sempre tinha muito cuidado com quem falava, o que falava, mas a gente teve também bastante ousadia, porque, por exemplo, uma vez nós fizemos uma greve geral na Unisinos, em 1979, paramos toda a Universidade, 28 mil alunos, não foi fácil, a gente trabalhou bastante, mas foi muito legal, porque algumas conquistas a gente teve a partir dessa greve que hoje ainda eles desfrutam e não sabem de onde que vem, mas foi do trabalho que a gente fez lá, naquela época.
Pergunta: Foi motivado pelo que a greve?
Resposta: Uma revisão nos currículos e uma mudança na forma de pagamento dos créditos. Na época era assim, que tu pagava todos os créditos no início do semestre, na época de inflação eles faturavam muito em cima de nós [risos], e a gente tinha que fazer empréstimo, juntar dinheiro daqui, dali, para poder comprar os créditos, pagar os créditos, né, e eles trabalhavam com o nosso dinheiro, isso não era justo, não era correto, então a gente conseguiu que fosse parcelado, e conseguimos em algumas matérias uma revisão dos conteúdos e tal. Todas as, porque a gente não só parou, mas fizemos seminários dentro da universidade, justamente para discutir as ementas e ver o que não estava bem e o que tinha que mudar, tanto na Arquitetura, na Engenharia que tinha lá, na Geologia, na Psicologia, em todos os cursos. Foi muito legal, muito legal. Eu acho que estou cansado até hoje de toda aquela maratona, mas foi legal, foi muito legal.
Pergunta: E você a se formar nos dois, então?
Resposta: Não. Só me formei em Teologia, em dezembro de 1979 eu me formei em Teologia, como eu tinha começado tarde a Sociologia eu ainda tentei uns créditos, mas em março de 1980 eu comecei a ser pastor [50’], e estava pertinho de São Leopoldo, em uma cidade chamada Esteio, que fica a uns 10/20 km de São Leopoldo, lá da Unisinos, teria dado, mas a gente vai se envolvendo no trabalho pastoral e tem grupos, muitos grupos à noite, então, no fim eu ia só nas segundas-feiras que é dia de, domingo do vigário, né, é a segunda-feira, eu ia às segundas-feiras à noite, mas depois eu desisti, lamentavelmente, eu não me formei em Sociologia, e também não queria mais, aí já estava em um outro ritmo, né, como pastor etc., então já tinha outras preocupações.
Pergunta: Como que é a formação de um pastor, os contratos que vocês fazem, os lugares onde você morou?
Resposta: É, a formação de um padre ou de um pastor ela é muito ampla, muito complexa, porque tem muito de filosofia, aí tem muito de história, da igreja, história geral e história da igreja, aí tem todos os assuntos tipicamente teológicos, é, como que é pecado, o que é salvação, o que é graça, então todos esses assuntos a gente tem que esmiuçar, aprender as diversas visões, as correntes, nesses quase dois mil anos aí de cristianismo foram se desenvolvendo, então, tem muito o que estudar. E antes de mais nada, as línguas, a gente tem que ter acesso ao grego e ao hebraico para poder ter acesso aos textos mais próximos dos originais, que textos originais da Bíblia não se tem, nenhum, então tem cópias de cópias da cópia, o que sem xerox era mais complicado [risos], então existe o texto que se imagina que seja o mais próximo, as sempre com as variantes em baixo, então tudo isso a gente tem que aprender para entender que a Bíblia não é uma bula de remédio, a Bíblia é um testemunho de fé dado por uma pessoa determinada, num contexto determinado, num tempo determinado, visando um outro contexto, às vezes, as Cartas de Paulo, por exemplo, ele escrevia de um contexto, mas visando um outro, então, para a gente poder entender, chegar mais, não é entender, chegar mais perto do original, do que se queria originalmente com cada texto da Bíblia, então a gente tem que estudar muito, tem que ter uma visão muito ampla para poder ter essa aproximação, senão a gente toma...
Pergunta: É eu percebi que o senhor ficou de 1973 a 1979, né, na faculdade, com bastante...
Resposta: É, nem todos levam tanto tempo, mas eu fiquei um ano na Argentina, em 1976, também foi uma coisa muito, muito impactante na minha vida. Eu cheguei lá no dia 18 de março e no dia 24 de março se deu o golpe que derrubou a Isabelita Perón, e começou a ditadura militar do Videla na Argentina. Então foi uma época muito, muito intensa que eu vivi lá, tinha uma visão bastante crítica e lá a repressão para quem tinha uma visão crítica foi muito maior do que a daqui do Brasil, foi mais intensiva, aqui foi mais estendida. Foi muito forte também, porque foi organizado pelas mesmas pessoas, né, pelos Americanos, mas aqui foi mais extensiva e lá foi muito mais impactante, então a gente sempre tinha muito medo, mas foi legal...
Pergunta: Foi intercâmbio?
Resposta: Foi intercâmbio, veio um estudante de lá, da Argentina, para o Brasil e eu fui para lá, e a gente ficou então, ele ficou meio ano e eu fiquei o ano inteiro lá, então, de cinco anos e meio passou para seis e meio, e aí eu ainda fiz um semestre de leitura, onde eu não assistia aula, eu só fiz leituras orientadas por um professor, então, foi se espichando o tempo, assim, e acabou sendo sete anos.
Pergunta: E lá na Argentina você estava em uma faculdade de Teologia.
Resposta: Sim, em Buenos Aires.
Pergunta: Você chegou a presenciar algum episódio próximo de repressão, algum amigo?
Resposta: Não. A gente só escutava à noite, quando eles descobriam uma célula dos montoneros, tupanaros era no Uruguai e montoneros na Argentina, ou era ao contrário? Agora eu estou confuso. Mas em todos casos [55’] quando descobriam uma célula deles, eles não prendiam ninguém, eles simplesmente jogavam uma bomba e matava todo mundo. Então, de noite, às vezes a gente escutava ‘tum’, um estouro, e a gente já sabia o que tinha acontecido, e no outro dia a mídia não falava nada, não aparecia nada nos jornais, nem nada, mas a gente sabia o que tinha acontecido. Uma vez vieram policiais, militares eram, e eles andaram por todas os quartos, por todas as salas da faculdade procurando livros subversivos ou alguma coisa assim, e a gente não sabe o que eles iam considerar livros subversivos, né [risos], no Brasil, eu não sei se vocês conhecem a história, uma vez um cara veio da Europa e trouxe um livro sobre o cubismo, e o cara foi preso, porque os caras lá da repressão pensaram que era sobre Cuba [risos], mas era sobre o movimento artístico do cubismo, então a gente nunca sabe o que está na cabeça de um cara desses, né, que exerce a repressão, então a gente já se prevenia, né, mas foi uma coisa, mas, assim, de violência eu não presenciei não.
Pergunta: Mudando um pouquinho de assunto, então, para uma parte mais agradável. Em que momento você conheceu a sua esposa e como foi essa história?
Resposta: [risos] Essa é uma história interessante. Eu já era pastor desde 1980 e solteiro, é uma coisa pouco comum na nossa igreja, principalmente em 1980, agora já é mais como, mas normalmente os estudantes já tinham suas namoradas e se formavam e ia para uma paróquia, né, ia ter casa, carro, salário, então, se casava e já ia com a esposa, ah e tinha mulheres também, isso é uma característica da igreja luterana que mulheres podem estudar Teologia e podem ser pastoras, então já tinham algumas, na época não eram muitas, hoje são mais, inclusive, uma das vice-presidentes da nossa igreja é uma pastora, tem presidente, primeiro e segundo vice, e é uma pastora, e nada impede que uma pastora venha a ser presidente da igreja, nada impede, e eu acho que não demora muito nós vamos ter uma pastora como presidente da igreja. Então eu era uma __________, era solteiro, e uma noite, um fim de semana tinha uma reunião grande de pastores e leigos na minha paróquia, em Esteio, e um pastor amigo meu ele namorava uma moça que estudava Teologia em São Leopoldo, que como e disse antes era ali do lado, eles “ah, tem uma reunião dançante lá, vamos lá?”, digo, eu não sabia bem como sair ali de Esteio para São Leopoldo, “ah eu te levo lá”, aí nós fomos no carro dele, inclusive, e ele, então, estava dançando com a namorada, e eu conversando com as pessoas que eu conhecia, porque eu conhecia todo mundo lá, de repente, uma moça veio, que era vice-presidente do centro acadêmico, que estava organizando a festa, e perguntou se eu estava de carro e eu disse que sim, embora não fosse meu o carro era do meu amigo, porque um cara tinha se machucado, ele tinha se cortado no braço, um corte fundo mesmo, feio, e tinha que ser levado para o hospital, então nós o levamos para o hospital, e enquanto ele estava sendo costurado eu estava conversando com essa menina, e a gente já tinha se olhado, assim, durante o baile, já era passado da meia-noite, mas ela dança muito bem e eu não cheguei na vez de dançar com ela, porque ela parava e já vinha outro e dançava, porque todo mundo queria dançar com ela, mas a gente estava se olhando, e aí começamos a conversar, e vimos que nós estávamos apaixonados um pelo outro, e decidimos casar ali mesmo [risos], desde que nos conhecemos já decidimos casar, nove meses depois nós estávamos casados, ela tinha uma bolsa para ficar um ano e meio nos Estados Unidos, e aí eu fui junto com ela para os Estados Unidos, mas foi uma coisa, assim, muito louca [risos]...
Pergunta: E ela estudava o que?
Resposta: Teologia também. Ela é pastora. Ah, sim, eu não contei isso, né. Mas foi lá na faculdade onde eu também tinha estudado, lá nós fazemos baile, [1’00’] não tem problema nenhum, assim, a gente vive uma visa bem normal, inclusive, vende cerveja, e tal etc., enquanto não há abusos nós entendemos que não há porque proibir, quando há abuso aí a gente tem que ver, mas, então, essa foi a história, e agora em abril fez 29 anos que aconteceu isso, em janeiro daí a gente casou e nós então fomos para os Estados Unidos, ficamos um ano e meio lá.
Pergunta: Ela tinha uma bolsa de intercâmbio ________________.
Resposta: Ela tinha uma bolsa de estudos mesmo, meio ano ela estudou Teologia e um ano ela fez estágio em uma comunidade lá, existe esse intercâmbio entre as igrejas, mas não veio um de lá para cá, como foi o meu caso com um estudante da Argentina, né, daquela vez.
Pergunta: E você tinha trabalho lá, como que foi?
Resposta: É, no início eu estudei inglês, porque eu tinha muito pouco conhecimento de inglês, então, enquanto ela estudou Teologia, numa cidade chamada ____________ no estado de Iowa e eu estudei inglês, e depois quando ela foi para uma comunidade eu ganhei um cargo num college da igreja luterana lá, que tem muitos colleges, college é uma faculdade, não é uma university, lá são, eles lá têm três áreas, e se num college tem, no mínimo, duas áreas, então já é university, mas, enquanto só tem uma área, eles tinha trinta e poucos cursos, mas tudo dentro da mesma área, então é um college, e só é